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Te Guardo no Bolso da Saudade (2021), direção de Rosy Nascimento.

A Natal que se faz em mim

Te Guardo no Bolso da Saudade (2021), direção de Rosy Nascimento

Eu te abraço, nossa contingência faz, aqui, agora, matiz sobre matiz, mistura sobre mistura. Sépia sobre cinza ou púrpura sobre ouro. Carta sobre carta ou cartas na mesa. Duas ligas mudam de título, as cartas são arranjadas, embaralhadas, redistribuídas. Uma tempestade eclode nos dois campos. Redesenham-se as linhas de força, curvas de nível, declives, vales. As redes mudam de trama. Quando um amarelo cai sobre um azul, vira um verde. Mudam os títulos das alianças, os títulos das ligas. Eu te abraço Arlequim, eu te deixo Pierrot; tu me tocas duquesa e te afastas marquesa.

 

Michel Serres, Os cinco sentidos - filosofia dos corpos misturados 1.

Uma cidade é composta por paisagens naturais, prédios, vielas, ruas, avenidas, rios que entrecortam e praias que margeiam; mas, antes de tudo, uma cidade é edificada por corpos vivos em circulação; importantes ferramentas de expressão que se transformam em meio de reconhecimento, afeto e, até mesmo, repulsa ou rejeição. Além do seu potencial de escrita, o corpo é também um caderno onde o mundo externo deixa constantes marcas e escreve histórias individuais, que ajudam a compor a história coletiva de uma sociedade; a memória de um lugar. Ao lermos os corpos, lemos também a cidade e vice-versa.

Para lermos o outro em sua subjetividade é fundamental que coloquemos também nosso corpo como parte de um todo, parte integrante desse outro a quem pretendemos lançar a busca por significado. Nosso ponto de vista contempla para além das paisagens de um espaço com suas quinas, bifurcações e nervos; ele determina a nossa percepção. A relação comunicativa traz ao conhecimento público não apenas uma informação veiculada pelo enunciado, mas o reconhecimento de uma relação estabelecida entre duas ou mais subjetividades. Dessa forma, não consigo dar início a uma leitura de parte do corpo-filme da cidade de Natal sem antes explorar e expor o meu próprio, a fim de descobrir quem é para mim esse outro de cuja composição sou peça e que se reflete em minha epiderme como marcas de nascença, rugas de velhice e feridas em eterna cicatrização. Meu percurso, motivações e escolhas compõem minha bagagem pessoal e influencia minha perspectiva sobre o mundo, pois “conhecer as coisas exige que nos coloquemos primeiro entre elas. Não apenas em frente para vê-las, mas no meio de sua mistura, nos caminhos que as unem”¹.

 

Por mais que relute, como Basílio² a expor a sua obra e revelar demasiado de sua alma, é importante partir de dentro de mim para poder acompanhar o outro em seu encalço; enfim, “decifro minhas rugas, gravuras do tempo, escritas a estilo; a alma frequenta este couro acoberto de inscrições”³. Percorro então a cidade através do caminhar e do olhar  das  personagens, buscando refletir sobre o mosaico de vidas que justapostas compreendem a ideia de cidade para além das fronteiras geográficas, deixando-nos tomar por “estratégias sensíveis, jogos de vinculação dos atos discursivos às relações de localização e afetação dos sujeitos”.

Deixei a maternidade Januário Cicco nos braços de minha mãe e fomos guiados por meu pai em um ônibus emprestado da empresa onde ele trabalhava até nossa primeira morada no bairro das Quintas, na beira da linha do trem. Esse foi meu primeiro trajeto. Franzino e doente, acharam que morreria com menos de um mês de vida; o que não aconteceu e por isso escrevo. Após as Quintas, Felipe Camarão, Nazaré e Bom Pastor, chegamos ao primeiro lugar que compreendi como casa e no qual residi desde os oito anos de idade: o bairro Novo Amarante, em São Gonçalo do Amarante. Além de um aspecto periférico, aprendi a viver à margem.

Estudante e profissional da área  do  audiovisual, com uma vida estabelecida  quase exclusivamente  em Natal, São Gonçalo se tornou uma cidade dormitório para mim. Dormia na rua Bacharel Raimundo Mendes e morava nos itinerários das linhas 04 e 176, em busca da realização de meus sonhos. Ao longo de mais de 15 anos, cruzei a ponte de Igapó e passei a reconhecer cada balanço dos ônibus, cada parada, assim como os  diferentes cheiros que invadiam as  janelas semiabertas. A curva do gancho de Igapó, o manguezal no nariz ao passar pelo Mosquito. Ir da zona norte à zona sul, atravessar a ponte. Me sentir num só lugar.

 

Há cinco anos deixei Natal, mas seu horizonte continua gravado em meu peito e suas memórias adornam meus dias. Distante geograficamente, o cinema da cidade tem sido um importante mecanismo de recordação do tempo vivido e uma ferramenta fundamental para o acompanhamento das modificações pelas quais a cidade tem passado. Ao entrar em contato com os filmes atualmente produzidos, me aproximo e passo a conhecer essa Natal que surge a cada  novo nascer do sol e se modifica em cada poente no rio Potengi, tendo como base e ponto de partida a memória; tudo o que ela toca e constrói.

Uma obra cinematográfica apresenta o ser humano para além do desempenho dele dentro do filme. Essa representação vem carregada de afetos e subjetividades. Um filme exibe para além de uma narrativa, o seu próprio processo de feitura; traduz em imagem as relações forjadas ao longo do processo. “Uns olham, contemplam, veem; outros acariciam o mundo ou se deixam acariciar por ele, atiram-se, enrolam-se, banham-se, mergulham nele e, às vezes, se esfolam”. Através desse contato, que chega a nos ferir, marcando nossa pele e modificando nossa subjetividade, nos misturamos, damos um pouco de nós e recebemos o que o outro traz. Isso nos faz sentir o mundo de maneira singular, pois nossa construção pessoal até o ponto do contato é única. Assim, apresento uma reflexão a respeito da singularidade, de uma Natal única, presente em mim, e não de uma cidade generalizada e estereotipada pelo sol.

Busco aqui discorrer sobre a minha cidade, como ela me toca e se mostra em cada parte de meu corpo quando lanço um olhar sobre ela. E como meu corpo ocupa, ainda que distante, as ruas dessa cidade e ajudam a compor sua paisagem com minhas memórias. Um corpo-caderno cuja escrita é sobreposta e jamais apagada; corpo à mercê do fluxo dos acontecimentos, se valendo dos encontros para construir esse roteiro aberto sobre o mapa da cidade. Roteiro que se dá no fluxo das palavras e dos olhares trocados, das histórias divididas, do sensível partilhado.

Como Clarissa que decide ela mesma sair para comprar as flores, me jogo aos acontecimentos das ruas; encontro o outro e a sua subjetividade me atravessa. Cada imagem fílmica se torna e reflete uma lembrança; juntas, concatenadas, formam uma memória individual, embebida em subjetividade e que não mostram uma Natal real, contemporânea ao momento do registro, mas uma localidade de afetos. Um diário-imagem que se metamorfoseia em memória. Uma cartografia; um modo “aberto, conectável, desmontável, composto de diferentes linhas e suscetível de receber modificações constantemente” que se mostra imprescindível quando estamos abordando a concepção de subjetividades que tem a memória como agente criador. Costuro uma reflexão sobre a cidade seguindo um fluxo temporal não linear, um ziguezague  entre o ontem, o hoje e o amanhã; os pés fincados no tempo pensado em detrimento do tempo vivido. Um tempo “aéreo, livre, mais facilmente rompido e retomado”¹. O momento exato em que “um fato se torna fator”. O tempo no qual o “pensamento age e prepara as concretizações do Ser”¹¹.

Abro os olhos, viro a esquina da Raimundo Mendes e caminho pela estrada do Golandim em direção ao zero-quatro. Espero sob o sol do meio-dia enquanto penso no infortúnio que é se locomover nessa cidade quando não se tem transporte privado. O ônibus  finalmente chega e recosto meu corpo cansado na janela, por onde vislumbro uma igreja católica; a paróquia do Amarante sempre me remete às quermesses na rua do ginásio, o cheiro de pipoca e o gosto de maçã do amor.

De relance, vejo pela porta entreaberta da igreja uma mulher. No pescoço, ela leva um terço, ao seu lado um santo restaurado por ela. Como que fruto de um dom, ainda criança, refez as mãos em oração de uma estátua da igreja de seu povoado. Pintou a imagem com as tintas do armazém de seu pai. Por coincidência ou destino, ele tinha todas as cores das quais ela precisava. Desde então, ela leva a vida à devoção e a restauração de corpos de gesso; símbolos de sua entrega e crença na fé católica.

Teve dois filhos que se foram com a benção e a certeza de que os amou. Está só, mas nunca sozinha. O deus no qual acredita está sempre presente. A fé a restaura¹² e ajuda a seguir; a continuar sonhando com o dia em que poderá acolher todos aqueles que não tem um lar. Aqui, ela vive há tanto tempo que parece já ter esquecido qual a fronteira entre São Gonçalo e Natal. Uma avenida que corta o corpo da cidade, separando seus limites, é suficiente para suplantar os que vivem e necessitam de sua intersecção? Não existem fronteiras reais quando os corpos são livres de circulação.

Maria do Socorro e sua fé lembram a minha mãe e sua promessa de só cortar os cabelos após sete anos caso conseguisse superar uma forte crise de depressão. Desde então, não tenho lembranças dos cabelos longos de minha mãe. Sigo o percurso do ônibus. Estranho o viaduto que se forma sobre o Gancho. Agora os carros voam¹³. À minha direita, a Coteminas deu lugar às lojas. O muro longo, quase que infinito, de sua fábrica parece ter sumido. A Tomaz Landim mudou sua paisagem e eu não consegui acompanhar de perto. O ponto de ônibus ainda está lá, peço parada para não me atrasar. Cruzo fora da faixa de pedestre, arriscando mais uma vez viver.

Cruzo um beco estreito com o mesmo medo de quando ainda tinha a certeza de que o muro da Coteminas jamais sairia dali. Pelo menos isso não mudou. Vou em direção ao vale da sombra da morte ¹. Chego à rua Felipe dos Santos e percorro seu calçamento de paralelepípedos. Cada emenda entre as pedras me faz recordar a falsa promessa do asfalto que nunca veio, do saneamento que não chegou após cada voto dado, do esgotamento que vira córrego na frente de cada casa. Bato palmas no número 262. Zefinha abre a porta. A abraço e seu cheiro me lembra a minha avó. Ela me convida para almoçar, diz que está temperando uma galinha. Abraço sua filha, Ciana, e me sento naquela pequena casa que frequento há mais de dez anos. Os olhos de Ciana lembram minha tia Neide e por uma fração de segundo lacrimejo com o choque do vento da madrugada sobre mim em um passeio de bugue ao lado daquela que partiu em 2012. 

Somos surpreendidos por fortes batidas no portão de ferro. Dêda pede para entrar e não permitirmos. Está noiada de craque. Nos seus pés descalços, no medo da sua voz, na sujeira sobre o seu corpo, eu vejo estampado o descaso do poder público sobre a população. A sombra da morte paira sobre a periferia todos os dias, sem exceção de feriado e dia santo. O pobre é excluído, marginalizado e emoldura a cidade com seu medo constante da violência policial. Enquanto, no centro da tela, vemos cores vivas iluminando o cartão postal.

Um corpo-cidade é vivo. Dentro de cada casa, das quatro paredes e do teto de cada residência, é onde também acontecem as transformações celulares que modificam o  corpo como um todo. As  relações afetivas compõem  as paisagens das cidades. Ao vermos Natal, temos que ver também seu povo, seus habitantes, seus conflitos. Não analisamos qualquer mistura com facilidade. Ao beber um copo de água com açúcar não consigo dissociar os componentes. Se “eu quiser beber essa água, sou obrigado a beber o açúcar, se quiser o açúcar, preciso engolir a água”¹. Não adianta  construirmos um ideal de cidade a partir das praias, das dunas, do paraíso tropical que é a cidade. Antes do olhar turístico, temos que esmiuçar as peças. Como descansar o corpo quando a alma da cidade cheira a desigualdade?

Soube que Zefinha foi presa injustamente logo após o nosso almoço. Foram procurar Dêda, que estava sendo acusada de assalto, e findaram por encontrar a fonte de renda de Ciana: o pequeno comércio de drogas. A essa altura, eu já estava caminhando a pé, descendo a estrada da Redinha em direção à ponte de Igapó, de onde jovens fazem saltos ornamentais e afundam em uma água escura com cheiro de lama e gosto de sal. Outra Neide me invade os pensamentos, Rosineide.

Guardada no bolso da saudade ¹, Neide é a mim apresentada por um olhar sensível e fraterno  de quem sabe pouco sobre ela, mas que partilha todo o amor que sente; sem deixar de lado a dor de um cordão umbilical prematuramente desfeito. Sou tomado por essa relação e quando dou por mim me perco em memórias alheias em meio à João Medeiros Filho, mas o canto de uma rasga mortalha sobre os tetos das casas me desperta. Viva os noivos. No horizonte, apenas um prédio. Do lado de cá, a cidade parece ainda não ter verticalizado tanto.

Sinto a brisa da praia de Santa Rita em meus cabelos; o gosto da ginga com tapioca invade minha boca; piso as conchas da Redinha; vejo a Ribeira enquadrada pelo aço enferrujado da ponte velha. Recordo minha própria mainha. Através da voz de Rosy, sou guiado pela Zona Norte. Toda e cada vida que já esteve desse lado do rio também é responsável pela composição da paisagem dessa cidade, deixando rastros de seu corpo a cada passo dado.

O sol ilumina o Potengi enquanto molho os pés em suas águas turvas. Subo em uma canoa em direção a uma pequena ilha que abriga uma única casa de taipa. Sou abraçado pela maré ¹. Fecho os olhos, aguço os ouvidos. Sou tomado por uma imagem abafada pelo engarrafamento na ponte: o som do mangue. Desloco a primazia da visão e adentro uma nova paisagem, a paisagem sonora. Amplio, assim, a percepção da matéria viva da cidade. Hilton desliga o motor. Pisamos terra firme. Biluca abre a porta de sua casa para a minha chegada.

“Ouvir requer um tempo do fluxo e o tempo do fluxo é o tempo do nexo, das conexões, das relações, dos sentidos e do sentir”¹. Ouço o mangue porque me entrego ao cotidiano daquela família. A paisagem sonora que compõe o espaço fílmico com as imagens visuais é fruto desse tempo partilhado e das relações edificadas, propondo um aprimoramento dos demais sentidos no processo de espectralidade.

Ao tratar de imagens em movimento, como o cinema, costumamos colocar a visão como canal primário para absorção da obra, esquecendo, muitas vezes, do papel da audição no processo de assimilação e produção de sentido daquilo que consumimos; afinal, os nossos sentidos funcionam em cadeia e não isoladamente. Imagens são concebidas desde os primeiros momentos de vida. Nascemos dependendo do outro e predispostos a essa interação, porém, tal qual devemos compreender que o ato de olhar extrapola a visão, devemos conceber também que as imagens não são apenas visuais, mas percepções dos demais sentidos coadunados, por mais que um ou outro se sobressaia.

O tempo partilhado nos dá a sensação de uma tarde com amigos, com os quais dividimos as dores, os amores e os sonhos. A maré sobe e desce, como as lágrimas que transbordam nos dias mais difíceis em que a comida falta, a fila do posto de saúde é longa e o emprego escasso. Uma casa de taipa edificada em uma pequena ilha montada à mão. O sonho de uma família em ter uma casa. A quem pertence e quem tem direito à terra dessa cidade?

Deixo aquela casa e me despeço de Biluca e Hilton com a sensação de que nada nessa cidade nos pertence. Que somos empurrados para a periferia para vivermos às margens, abandonados; nos valendo de nossas próprias mãos para erguer nossos pequenos palácios. Somos artesãos em nossa própria busca por sobrevivência.

“Não pensamos com nossas impressões primeiras, não amamos com nossa sensibilidade original, não queremos as coisas com uma vontade inicial e substantiva”¹. Percebemos o peso do tempo sobre nossas impressões, nossa sensibilidade e nossa vontade, que estão sempre em devir, uma mudança constante de acordo com as experiências que se mostram em nosso percurso. Penso em como não questionei na infância o porquê de nunca ter ido à praia de Ponta Negra, circulado pelos shoppings ou sequer de ter pisado na Zona Sul da cidade. O quanto muito me foi negado enquanto espaço de socialização da cidade pelo simples fato de, talvez, não haver espaço para a circulação da pobreza dentro dessas paisagens. Tudo reservado aos turistas e à pequena burguesia. Enquanto o Morro do Careca  me era negado, eu avistava o bascuio ²⁰ de Cidade Nova do topo dos morros do Planalto,  onde subia com meus primos no final das tardes de domingo no final dos anos 1990. Mais uma vez, à margem.

Do topo desses mesmos morros, avistamos hoje a luta por moradia refletida no conjunto Leningrado ²¹ e enxergamos uma cidade que clama por divisão de terras; um teto sobre si para aguentar o sol que, ao mesmo tempo, bronzeia o corpo do estrangeiro e massacra a pessoa em situação de rua.

Como bem nos lembra Marcos: “ninguém nasceu para viver de joelho, mas em pé e de cabeça erguida”²². A luta dos habitantes do conjunto Leningrado ainda não acabou. Um espaço ocupado e edificado pela resistência coletiva grita pelo reconhecimento do seu território, por um código de endereçamento postal para passar a existir nos registros públicos. Um território marginalizado e invisibilizado. Aos habitantes desse lugar, são negados os direitos básicos de segurança, saúde e educação. A cidade não para de crescer, mesmo quando os poderes esquecem de estender a mão.

Após percorrer as ruas do Leningrado, subo no 41 em direção ao centro da cidade. Deixo o bairro com o desejo de dias melhores e a certeza de que precisamos lutar por uma cidade mais justa. Ao chegar na Cidade da Esperança, um senhor trajando camisa floral de mangas curtas, boné e óculos de grau se senta ao meu lado. Sua mão treme um pouco. Seu nome é Inácio ²³.

Nos olhamos como velhos conhecidos e, sem barreiras entre nós, falamos sobre o dia ensolarado que banha a cidade enquanto nos faz pingar de suor; sobre a prisão em forma de biblioteca onde ele é hóspede; sobre o amor pelo cinema; sobre o ser humano em sua essência complexa e surpreendentemente bela. Em frente ao antigo Rex, na avenida Rio Branco, ele me conta sobre o cinema de arte e a arte de ver cinema; o cheiro de pipoca do cinema aliado ao cheiro de mofo da sala; a textura da poltrona ou o gosto da guloseima na nossa boca ao vermos um  filme. Ele me fala sobre uma Natal que vejo em preto e branco em matérias antigas de jornais. Uma cidade que se assemelha e se distancia tanto da que hoje percorremos.  Me pergunto se quem está em movimento somos nós ou a paisagem que enxergamos pela janela. Enquanto a memória seguir registrada e as lembranças difundidas, algo ou alguém não será esquecido. Inácio é Natal, na mesma medida que Natal é um jovem senhor de camisa floral, boné e óculos, que circula de ônibus e lança suas recordações como sementes no solo dessa cidade.

Ao transpor a vida de alguém para a tela do cinema, através de uma produção documental, deve-se levar em consideração a força das imagens e da relação desenvolvida entre aquele que documenta e o que tem a vida documentada. Esse aspecto é de fundamental importância para a captura da essência do ser humano que, muitas vezes, se esconde de si próprio e custa a se mostrar em sua integridade. O tempo partilhado, que ajuda a engendrar essas relações, leva o diretor a ter uma leitura ampla do seu processo de criação, deixando de lado ideias predeterminadas, em busca da adaptação que o fluxo dos acontecimentos traz. Isso se dá, na dimensão do sensível, da subjetividade do outro; camadas desveladas pela intimidade constituída pela comunhão, pela partilha sensível. Vivemos enquanto nosso corpo existir biologicamente, mas existimos enquanto somos reconhecidos e lembrados. Que Inácio exista enquanto existir cidade.

O deixo na Sétima Arte e sigo minha caminhada. Uma mulher me aborda e diz: sei que cidade é essa, conheço os nomes das ruas. Sei, no entanto, que as pessoas desmemoriadas podem ficar um bocado confusas. Seu nome é Janaína²⁴ e eu me vejo nela, afinal também conheço a cidade; o nome das ruas; a cigarreira em frente à Thiago Calçados, onde comia coxinha com caldo de cana em uma das poucas memórias leves que tenho de meu pai; a parada de ônibus da C&A,  onde me refugiei para tomar um sorvete após encontrar um antigo amor da adolescência. Mas sou surpreendido por uma das afirmações dela: nada sei ao meu respeito.

Decido seguir seus passos. Talvez ela encontre alguma informação sobre si e, assim, eu consiga também algo novo sobre mim. Já não sou aquele do início. A partilha nos faz passíveis de constantes mudanças e aprendizados com tudo e todos que cruzam nosso caminho.

O seu corpo nu está demarcado enquanto caminha pelas ruas da cidade em busca de si, para o espanto de uma sociedade que naquele exato momento julga e nomeia cada parte sua exposta. “Quem dá nome ao corpo do boi é quem o retalha”². Retalhada, Janaína segue pelas vias de uma sociedade patriarcal que quer ditar as regras de seu corpo, suas vontades e desejos.

Descemos em direção à Ribeira, cruzamos a praça Augusto Severo, que me remonta à adolescência, os primeiros amores. Caminhamos até Santos Reis, onde vejo o mar pela primeira vez desde que abri os olhos na Raimundo Mendes hoje mais cedo. O sol sobre mim, a areia da praia em meus pés, o mar perante meus olhos, o cheiro de maresia. A ideia de uma Natal comercializada e presente no imaginário brasileiro se estende à minha frente. E me pergunto: qual é finalmente a Natal que se faz dentro de cada um de nós?  

Antes do cair do sol, me sinto ainda ligado por um fio fino que se estica mais e mais com todos aqueles que encontrei ao longo do dia à medida que caminhei por Natal; como se os amigos estivessem ligados ao meu próprio corpo². Estou inundado por cores e tons vivos e expressivos que me faz lembrar que “o mundo é muito maior do que o recorte visível que vemos no filme”². A memória se sobrepõe à história, aos fatos acontecidos. 

Tudo o  que aqui reflito traz consigo o peso da minha subjetividade e da minha história de vida; não é algo alheio ao eu, à minha existência. Não consigo separar tudo aquilo que vivi até hoje da forma que eu percebo o mundo. Estendo a mão, subo no primeiro ônibus. Os pés molhados de água do mar e o peito carregado de  diversos eus de uma Natal que só existe em mim.

1. SERRES, M. Os cinco sentidos - filosofia dos corpos misturados 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 76.

2. Basílio Hallward, personagem da obra O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, responsável por pintar o retrato do protagonista.

3. SERRES, M. Op. cit., p. 72.

4. SODRÉ, M. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 10.

5. Trecho da letra da música Zona Norte Zona Sul presente no CD Dois Tempos da cantora Khrystal. A composição é de autoria de Ricardo Baya.

Zona Norte Zona SulKhrystal
00:00 / 04:13

6. SERRES, M. Op. cit., p. 32.

7. RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2009.

8. Personagem protagonista da obra Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. O Romance acompanha um dia na vida de uma mulher que percorre a cidade de Londres refletindo sobre si e sobre a vida enquanto cruza, durante seu passeio, com diversos personagens que vivem também suas próprias reflexões e individualidades.

9. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 2001, p. 30.

10. BACHELARD, G. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988, p. 24.

11. Ibid., p. 24. 

12. A Fé que Restaura (2015), de Ferreira Neto.

13. Referência à obra Janaína Colorida Feito o Céu (2014), de Babi Baracho.

 

14.  Ainda que Eu Ande Pelo Vale da Sombra da Morte (2018), de Helio Ronyvon.

15. SERRES, M. Op. cit., p. 75.

16. Te Guardo no Bolso da Saudade (2021), de Rosy Nascimento.

17Abraço de Maré (2013), de Victor Ciriaco.

18. BAITELLO JR., N. A cultura do ouvir. Rio de Janeiro: UFRJ, ECO, Publique, 1999, p. 21.

19. BACHELARD, G. Op. cit., p. 21.

20. Bascuio (2019), de Tupan Diego.
 

21. Leningrado, Linha 41 (2017), de Dênia Cruz.

22. Fala de Marcos, personagem documentado no filme Leningrado, Linha 41.

23. Sêo Inácio (ou o Cinema do Imaginário) (2014), de Helio Ronyvon.

24. Referência à obra Janaína Colorida Feito o Céu (2014), de Babi Baracho.

24. Referência à obra Janaína Colorida Feito o Céu (2014), de Babi Baracho.

25. Fala da personagem Janaína em Janaína Colorida Feito o Céu.

26. Trecho que faz referência a uma reflexão de Clarissa Dalloway em Mrs. Dalloway, mais precisamente ao retorno à casa dela após comprar flores. 

27.  NICHOLS, B. Introduction to documentary. Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 2001, p. 134 (tradução nossa).

Helio Ronyvon
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Helio Ronyvon

helioronyvon@gmail.com 

Graduado em Rádio e TV e mestre em Estudos da Mídia. Roteirista dos longas Todas as Cores do Branco e Meu Sofá, e dos curtas No Fim de Tudo e Três Vezes Maria. Diretor e roteirista de Sêo Inácio (ou o Cinema do Imaginário) e produtor executivo de Abraço de Maré. Foi assistente criativo na Chatrone, criadora das séries Gaby Estrella e Juacas, e do longa Festa no Céu.

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