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Rap presenta (2015), direção de Wallace Yuri e Luara Schamó

Um convite à paisagem sonora urbana e cinematográfica de Natal

Rap presenta (2015), direção de Wallace Yuri e Luara Schamó

A gente também fala da rua, da nossa realidade, do que a gente viveu, e do que a gente tá vivendo atualmente.

 

Rap presenta¹.

Toda jornada é iniciada quando a gente se permite render-se pela paisagem e pensar em todos os timbres sonoros. Falas, sotaques, sons e o intercâmbio na comunicação entre integrantes de distintos grupos sociais, nos leva a ponderar os valores sociais e culturais de um lugar. E pensar o lugar, nos leva a pensar a “paisagem sonora”² que pode ser compreendida como qualquer ambiente acústico estudado por suas características diferenciadas, tendo em mente o impacto da interação dos grupos sociais atuantes nela. 

Assim, o olhar é imediatamente atraído para as palavras do pesquisador e compositor canadense R. Murray Schafer: “Desde algum tempo, eu também acredito que o ambiente acústico geral de uma sociedade pode ser lido como um indicador das condições sociais que o produzem e nos contar muita coisa a respeito das tendências e da evolução dessa sociedade.”³. Todos nós nos tornamos maiores quando mergulhamos nas teorias. Chegamos a um novo jeito de pensar a paisagem como um convite: Como os olhares atentos à cena reconhecem as paisagens sonoras de sua cidade e do “seu” cinema? Como eu vejo? Como você, espectador, percebe as paisagens sonoras da cidade do Natal?

“Num mundo de movimentos sociais tão díspares, todos os indivíduos se encontram e se desencontram, todos os indivíduos se complementam, todos os indivíduos se confrontam.” Dar forma a uma experiência do presente na matriz-ensaio é pensar a experiência do meu olhar sobre o outro e sobre a vida. No modo como a construção do olhar sobre a vida embala José Pires e a sua concepção de um mundo multiculturalista. É significativo ponderar a questão de revestir-se de sensibilidade diante das paisagens sonoras da vida. Isso significa dizer que pessoas de culturas distintas, apresentam sonoridades peculiares e sofrem transformações com o desenvolvimento sócio-histórico das cidades. A paisagem sonora é o somatório dos sons que nos rodeiam. Ensaiar é também olhar a existência das possibilidades subjetivas das experiências de vida.

Lembre-se, é preciso pensar nas grandes transformações ocorridas nas cidades durante as últimas décadas, e a crescente concentração populacional urbana que modifica a  paisagem sonora já transmutável, com o comportamento humano que segue o mesmo curso. Dentro de uma totalidade de sons, a paisagem sonora de uma cidade descreve sua realidade, carregada de significados multiculturais partilhados dinamicamente por grupos.

Explicito que uma realidade construída, como a do cinema, explora expressivamente imagens, sons e textos no exame das representações da cidade tangível e sua construção imagética da realidade, toca a relação entre as paisagens fílmicas e as sonoridades que esses ambientes constroem. A razão de ser do nosso ensaio se encontra no contexto do espaço acústico da cidade do Natal (RN). Pesando a relevância de se compreender como as sonoridades e as pessoas se relacionam em meio a tantos outros sons presentes nas paisagens simbólicas da capital no cinema.

Partimos das obras fílmicas que configuram um lugar de destaque para uma realidade percebida e apreendida, especialmente quando focam temas próximos aos observadores. Onde tem muita gente reunida em um mesmo lugar, não podemos falar de uma única cultura, há culturas distintas que denotam paisagens sonoras peculiares, as quais sofrem transformações internas conforme o desenvolvimento histórico das sociedades.

Para compreendermos o que venho definindo como convite à paisagem sonora, lembro que aos meus olhos qualquer paisagem será sempre uma obra de arte. Silenciada ou não, a paisagem irá sempre “cantar”. A paisagem que canta é a mesma que “recita uma poesia”. Recordo-me certa vez quando questionada pelo gosto do cavaco chinês ao correr pela rua na direção do vendedor, e a resposta ecoou naturalmente: “o gostinho da infância!”. Uma paisagem, som, sabor ou aroma remeterá habitualmente a uma memória marcante.

Com sua poética, à obra fílmica Tingo Lingo , de Wallace Santos, coube-me como um exercício retrospectivo de caráter marcante e efêmero da infância. O som do triângulo soa “tingo lingo” e os vendedores de cavaco chinês caminham pelas ruas. Diria que Tingo Lingo não poderia ter outra escolha para o título que dá origem à representação desse filme. “Tingo lingo” é o som agudo que o triângulo emite, tipicamente nordestino e também de raízes portuguesas, o instrumento soa xote, xaxado e baião. Comprovamos a ação na cena em que as crianças compram cavaco chinês e se divertem dançando ao som do triângulo.

Àquele exato momento que uma criança escuta a música, corre para comprar e saborear um cavaco chinês poderia nomeá-lo do “tingo lingo” à infância. O som (“tingo lingo”) é o signo musical que se transforma em um delicioso cavaco chinês e logo remete à infância. No exato momento em que o “tingo lingo” anuncia a hora de correr até o vendedor. E esse saboroso "passatempo" tem um ingrediente muito especial: o poder da sociabilidade.

Os anos se passam, e a passagem do tempo insistentemente torna o som do “tingo lingo” atemporal à paisagem. E essa experiência não pode ser totalmente dissociada do tempo. Certo momento, o som do triângulo se confunde entre tantos outros sons conflituosos e urbanizados da cidade, especialmente na cena que enquadra a área de concentração comercial, onde fica o bairro do Alecrim, na Zona Leste de Natal. Costumo me referir à paisagem do Alecrim como um excelente lugar para se “achar de tudo”, mas um lugar “insalubre” visualmente e sonoramente por sua natureza densa de propagandas sonoras e visuais.

A exposição da obra cinematográfica de Wallace Santos configura dentro da paisagem sonora o fundamental valor de viver na companhia de outras pessoas, a brincadeira entre crianças e adultos, e da partilha que se inicia com a conquista diária do pão de cada dia pelo vendedor de cavaco chinês. Ao mesmo tempo que naquele momento, a realidade advinda da reforma trabalhista é propagada pela mídia e ressoa dimensões críticas aos obreiros do amanhã.

Não configuro uma ordem cronológica entre os filmes. Mas a primeira pista de intencionalidade da paisagem sonora presente em Rap presenta , segue ainda descrito nos primeiros trechos entre os créditos iniciais. Entre o plano detalhe de uma mão que grafita, e a ilustração em grafite no plano detalhe: “É o movimento cultural que mais cresce no Brasil, nunca parou de crescer desde a década de 80 e a gente ainda não alcançou exatamente o ponto que a gente precisa”. Na sequência, a ilustração de uma cabeça “monstruosa” com um nariz, inúmeros dentes na boca e três olhos amendoados. É o resultado da fusão do som com o fenômeno da arte urbana do grafite.

Sob um olhar educado imageticamente e artisticamente, a cena de um filme que enquadra o grafite, soa sempre como paisagem sonora da arte urbana. São cores, linhas, texturas, ritmo e formas combinadas em bi ou tridimensionalidade com personagens imaginados ou não, reflexo de uma mensagem de cunho social. A força de expressão é “o lugar da arte” ou melhor, a expressão das multidões. Arte propaga expressão comunicativa. É a força de expressão da raça humana, “A raça humana risca, rabisca, pinta a tinta, a lápis, carvão ou giz”, como canta Gilberto Gil na música “A raça humana”.

Vozes masculinas em off distribuem relatos de amor ao movimento artístico do Hip hop, meio ao pôr do sol enquadrado (em primeiro plano) em uma área urbana, postes e árvores. As batidas da música de abertura marcam o ritmo e a poesia do rap em um andamento agitado, sugerindo um ritmo que demarca o cotidiano e os problemas enfrentados. O rap é o ritmo que embasa todo enredo fílmico. O Hip hop é a música e a trilha sonora presente na diegese, um dos elementos dramáticos mais importantes para a narrativa de um filme. A paisagem sonora do filme não se limita à voz off, mas se estende a um ambiente composto por música, vozes, sons não-verbais e demais ruídos. A relação dialógica entre a voz off e a paisagem sonora, multiplica os elementos para além da voz, que contribuem para a construção discursiva.

Da paisagem sonora que tem a voz como força de expressão, no filme Rap presenta, em pleno cenário urbano, embora a música esteja constantemente presente, predominam os timbres vocais dos relatos perpetuados em falas dos conflitos cotidianos, das conquistas e também do empoderamento feminino em forma de canto¹⁰. Não há silêncio. O silêncio é uma incógnita. Entre inquietações reverberadas em fala e os sons que compõem a música, esses são os elementos elencados pelos diretores para a construção da paisagem sonora da Zona Norte da capital no filme. Sons humanos da fala e do canto, sons da música e da rua, são fundamentais “porque nos ajudam a delinear o caráter dos homens que vivem no meio dele.”¹¹.

Talvez possamos pensar a análise da paisagem sonora de Rap presenta, com base nas percepções e memórias apresentadas por cantores, dançarinos e artistas do Hip hop que representam um grupo social localizado na Zona Norte de Natal (RN). Revela-se a paisagem vivida cotidianamente que evoca a memória, ressignifica sons e o lugar, e faz o lugar ser familiar para os grupos sociais formados nesses bairros.

Fundamentalmente, a paisagem sonora de Rap presenta comporta o lugar de valores simbólicos de muitos signos em um mesmo lugar. É nesse lugar que as re­lações sociais ocorrem, e através delas os valores são compartilhados. Desse modo, a construção de valores não segue uma total espontaneidade. Na experiência individual e coletiva, ao pesarmos nossas preferências e escolhas cotidianas: vestuário, música e entretenimento -, não emergem da força de expressão de nossa subjetividade inocente e inteiramente “pura”, são decorrentes da interação social e do poder simbólico da construção dos valores da realidade¹²

A proposta do cenário urbano, a escrita em muros (grafite), DJ's, b-boys e MC's, estruturam em Rap presenta elementos em uma produção musical, de sociabilidade e memória da Zona Norte da capital potiguar. No contexto histórico abarcado pelo Hip Hop e nos relatos que o documentário retrata, jovens rappers ambientam por meio da música, a construção de uma consciência política de uma geração periférica, estigmatizada sob uma cultura periférica urbana.

Num breve passeio curioso, as disparidades simbólicas, geográficas e sonoras podem ser vistas na perspectiva oferecida por Ygor Felipe, em Estrondo ¹³. O título do filme nomeia um dos maiores cartões postais da cidade, o Morro do Careca, com um cognome sonoro, conduzindo depoimentos de moradores de Ponta Negra e acontecimentos que marcaram a história de uma das praias mais populares da cidade do Natal.

“Qual foi o primeiro som que se fez ouvir? Foi a carícia das águas.”¹⁴. Caso fosse para descrevermos a paisagem sonora natural da praia de Ponta Negra, chamaríamos de “vozes do mar”, conforme Schafer. Mas aqui, a paisagem sonora mediante a perspectiva apresentada no filme de Ygor Felipe, se funde entre urbana e natural, e retrata a violência simbólica sob a visão de uma paisagem acústica de sons que se mesclam entre os ruídos das escavadeiras trabalhando e os sons das ondas do mar.

 Aqui, a violência simbólica é denotada pelos relatos dos moradores da região e pelo simbolismo da trincheira à beira-mar que cava, organiza pedras e aponta obras em trâmite no sentido da urbanização. “A Barreira do Inferno tomou tudo [...] se não fosse a Barreira do Inferno, aqui tinha gente que era agricultor. [...] Aí foi quando Fernando Pedroza veio para a banda de cá e tomou as terras do povo.” Esses relatos de antigos moradores da Vila de Ponta Negra; pescadores e rendeiras, apresentam na paisagem sonora velada, a violência simbólica da desigualdade e da falta de reconhecimento pelo poder aquisitivo entre as partes envolvidas: agricultores, pescadores e contribuintes para o processo de tomada pela urbanização, reurbanização e formação da área turística.

“Retiraram a gente... na retirada das barracas como se tivesse tirado marginal” -, o relato do dono de quiosque (Neto), é sobreposto à paisagem sonora das “vozes do mar”¹⁵, e intercalado às imagens de arquivo do ocorrido em 1999, e a tomada pela reurbanização da orla objetivando o turismo. Possamos nós pensarmos que essa reestruturação só focou em  melhorias para comerciantes, moradores e os turistas. Mas, penso que pescadores e comerciantes e afins, foram obrigados a se “calarem” e a sofrerem uma brusca transformação em seus meios de sobrevivência.

A meu ver, alguns acontecimentos da história da sociedade se repetem com tamanha frequência, como situações de conflito e violência que para muitos olhares passam despercebidos e nos impede refletir sobre eles. Estrondo não tem a intenção imediata de oferecer a visão paisagística do cartão postal do morro do Estrondo ou da praia de Ponta Negra, mas as consequências de um processo violento de urbanização.

Natureza e urbanização se imbricam em constante conflito. Mas aqui, a paisagem sonora mais marcante e velada, é a memória de todos que um dia puderam ter a felicidade de prestigiar um momento de escalada no Morro do Careca e observar a paisagem simbólica bem do alto. Crianças e adultos que em uma ocasião realizaram um roteiro diferenciado, explorando a altura do cartão postal da cidade, com uma estética bem peculiar que jamais foi retomada. Viver da agricultura e da pesca torna-se uma memória incomum pelos desafios do desenvolvimento urbano. Tão velado quanto a memória do pé de cajarana que sumiu com o “estrondo” do morro durante a década de 1980.

Falar do silêncio não é apenas falar de discrição. Falar de silêncio é falar das violências que as paisagens sonoras retratam nas locações cinematográficas. O convite está em olhar a paisagem com deleitamento. Olhar a paisagem da cena, é analisá-la com todos os seus sons. Penso a paisagem sonora como uma experiência que confronta presente, passado e futuro. É a experiência do presente que [re]pensa o passado na forma de um signo indicial. São os sons-palavras que pensam e abrem o caminho entre os porta-vozes do presente que relatam o passado, e a visão do futuro que os valores constroem.

Avaliar uma paisagem sonora pode tornar um pensamento distendido e volúvel. Incertamente, repercutirá uma expressão sonora exata e estática. Retratar aspectos da infância, interação social, passado e/ou conflitos culturais, são apenas algumas maneiras de observar as paisagens sonoras nos filmes. As subjetividades afloram. Não se pode impedir a construção de utopias ou traços de afirmação da realidade. Paisagens sonoras nem sempre são confortáveis. Trata-se de projetar ou imaginar, um lugar fictício ou real, a questão é o que diz esse lugar, para isso deve-se buscar detalhes significativos, signos do presente e indicadores [in]dissociáveis ao universo visual e sonoro que nos rodeia. Meu pensamento urge como um convite que faço para os diversos olhares que observam a “cena”. Adentrem em suas subjetividades.

1.  Fala em voz off é apresentada nos créditos iniciais de Rap presenta. A citação é usada aqui como forma analógica e elucidativa da temática e do objetivo de uma paisagem sonora.

2. Soundscape é o termo original, neologismo criado por Murray Schafer. SCHAFER, R. M. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora. São Paulo: Editora da UNESP, 2001.

3. Ibid., p. 23.

4. PIRES, J. Em prosa e verso vos saúdo. João Pessoa: Ideia, 2013, p. 167.

5.  Como nossas criações tendem a estar integradas aos valores cotidianos, o conceito de “paisagem sonora”, proposto inicialmente pelo musicista e teórico canadense Raymond Murray Schafer (2001), desenvolve a reflexão de que as pessoas, de alguma forma reproduzem os ambientes sonoros que vivem em forma de linguagem e\ou de música.

6. Tingo Lingo retrata a história de três vendedores de cavaco chinês que lutam pelo pão de cada dia perpassando o campo, o litoral e a cidade, ao mesmo tempo, e contraditoriamente, noticiários soltam ameaças aos direitos dos trabalhadores a uma ouvinte serralheira da rádio. Tingo Lingo (2018), de Wallace Yuri.

7. Exploramos os signos em Santaella (1998, 2012, 2018). SANTAELLA, L. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2012. SANTAELLA, L.; NOTH, W. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998. SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2018.

8. Rap presenta (2015), de Wallace Yuri e Luara Schamó. Esse processo de significação - som, gosto e memória -, e transferência de signos, é conhecido por semiose. Ibid., 1998.

 

9. Documentário produzido durante a primeira edição do Festival de Hip Hop Potiguar realizado em 2015, no Espaço Cultural Jesiel Figueiredo, na Zona Norte da capital.

10. Cena do filme Rap presenta apresenta o relato do rap representado pela voz feminina do Caboclas Mc's, em Natal.

11. SCHAFER, R. M. Op. cit., p. 26.

12. Documentário produzido durante o Festival Rap Presenta, que reuniu Mc’s e bandas dialogando sobre desafios, conquistas e expectativas dentro da cena do Hip Hop Potiguar.

13. Estrondo (2013), de Ygor Felipe.

14. Ver Pierre Bourdieu (1989, 2007a, 2007b). BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007a. BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp: Porto Alegre, 2007b.
 

15. SCHAFER, R. M. Op. cit., p. 33.

Veruza Ferreira
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Veruza Ferreira

veruzaferreira12@gmail.com 

Professora, doutoranda e mestra pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia da UFRN. Licenciada em Artes Visuais, pela mesma instituição. Desenvolve criações artísticas em artes visuais, pesquisas na área de mídia audiovisual e cinema com interseções entre estética, cultura visual e artes.

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